Transexualidade
não é mais classificada como doença, anunciou a Organização Mundial da Saúde na
última segunda-feira (18). Após 28 anos, a OMS lançou uma nova edição da
Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com
a Saúde (CID) e, nela, a transexualidade, até então entendida como
"transtorno de identidade de gênero", deixa de ser uma "doença
mental", mas continua incluída no catálogo como "incongruência de
gênero".
Nesta
atualização, batizada de CID-11, que substitui a CID-10, a transexualidade
passa a integrar um novo capítulo entitulado "condições relacionadas à
saúde sexual" e é classificada como "incongruência
de gênero". Na edição anterior do catálogo, o termo estava
no capítulo sobre "transtornos de personalidade e comportamento", em
um subcapítulo chamado "transtornos de identidade de gênero".
Nos últimos 10 anos, especialistas ligados à OMS analisaram as informações científicas mais recentes sobre diversos temas para criar um novo padrão que pudesse ser usado por profissionais da saúde do mundo inteiro. Cada país, no entanto, precisa se adaptar à nova CID até 1º de janeiro de 2022.
No catálogo, a chamada "incongruência de gênero" é entendida como "incongruência acentuada e persistente entre o gênero experimentado pelo indivíduo e àquele atribuído em seu nascimento. Mero comportamento variante e preferências pessoais não são uma base para o diagnóstico."
A atualização do CID também inclui o tópico específico para "incongruência de gênero de adolescente ou adulto" que é entendida como "uma incongruência acentuada e persistente entre o sexo experimentado pelo indivíduo e o sexo atribuído", e estabelece que o "diagnóstico" não pode ser realizado antes da puberdade.
"A lógica é que, enquanto as evidências são claras de que [a transexualidade] não é um transtorno mental, de fato pode causar enorme estigma para as pessoas que são transexuais e, por isso, ainda existem necessidades significativas de cuidados de saúde que podem ser melhores se a condição for codificada sob o CID", justifica a OMS em nota publicada no site oficial.
A edição anterior estava em vigor desde maio de 1990, ano em que o termo "homossexualismo" foi removido da lista e deixou de ser entendido como doença. A data de exclusão do termo como distúrbio se transformou no Dia Internacional contra a Homofobia e a Transfobia, 17 de maio.
A psicologia que se antecipa
Mesmo
antes de publicação do novo CID, desde janeiro de 2018, psicólogos estão
proibidos de tratar travestilidade e transexualidade como doença ou anomalia,
determinou o Conselho Federal de Psicologia (CFP). Profissionais estão
impedidos de praticar qualquer ação que favoreça preconceitos, como terapias de
conversão, reversão, readequação ou reorientação de identidade gênero. Para o
CFP, "é dever dos psicólogos contribuir para a eliminação da transfobia".
Na prática, a Resolução nº1/2018, visa impedir que os profissionais façam "uso de instrumentos ou técnicas psicológicas para criar, manter ou reforçar preconceitos, estigmas, estereótipos ou discriminação" contra transexuais e travestis, proibindo os profissionais da área de "propor, realizar ou colaborar com eventos ou serviços que busquem terapias conversivas, reversivas, de readequação ou de reorientação de gênero".
Em seus oito artigos, o documento estabelece que psicólogos e psicólogas:
- Atuarão segundo os princípios éticos da profissão, contribuindo com o seu conhecimento para uma reflexão voltada à eliminação da transfobia e do preconceito em relação às pessoas transexuais e travestis.
- Não exercerão qualquer ação que favoreça a discriminação ou preconceito em relação às pessoas transexuais e travestis.
- Não serão coniventes e nem se omitirão perante a discriminação de pessoas transexuais e travestis.
- Não se utilizarão de instrumentos ou técnicas psicólogicas para criar, manter ou reforçar preconceitos, estigmas, estereótipos ou discriminações em relação às pessoas transexuais e travestis.
- Não colaborando com eventos ou serviços que contribuam para o desenvolvimento de culturas institucionais discriminatórias em relação às transexualidades e travestilidades.
- Não participarão de pronunciamentos, inclusive nos meios de comunicação e internet, que legitimem ou reforcem o preconceito em relação às pessoas transexuais e travestis.
- Não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização das pessoas transexuais e travestis. Parágrafo único: as psicólogas e os psicólogos, na sua prática profissional, reconhecerão e legitimarão a autodeterminação das pessoas transexuais e travestis em relação às suas identidades de gênero.
- É vedado às psicólogas e aos psicólogos, na sua prática profissional, propor, realizar ou colaborar, sob uma perspectiva patologizante, com eventos ou serviços privados, públicos, institucionais, comunitários ou promocionais que visem a terapias de conversão, reversão, readequação ou reorientação de identidade de gênero das pessoas transexuais e travestis.
A decisão foi publicada 19 anos depois da Resolução 01/99, que proíbe que psicólogos promovam a chamada "cura gay". No artigo 3º, o CFP determina que os psicólogos não podem "patologizar" – ou seja, tratar como doença – "comportamentos ou práticas homoeróticas". Também não podem adotar "ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados".
A norma segue orientação da OMS (Organização Mundial da Saúde), que, em maio de 1990, deixou claro que a homossexualidade não é doença ao retirar a orientação sexual da lista de doenças mentais do Código Internacional de Doenças (CID).
A "cura" anterior: A da homossexualidade
A
decisão do CFP vem em meio à polêmica que cerca a iniciativa de um grupo de
psicólogos para derrubar a resolução de 1999, que proíbe os profissionais da
área de oferecerem "tratamento" ou "cura" para a
homossexualidade.
Em setembro de 2017, o juiz Waldemar Cláudio de Carvalho, da 14ª Vara Federal de Brasília, em uma decisão liminar (provisória), acatou o pedido dos profissionais e determinou que o CFP não deveria impedir "atendimento profissional, de forma reservada, pertinente à (re)orientação sexual".
Em dezembro, ele alterou alguns termos da decisão e afirmou que é dever do Judiciário "impedir que o CPF, ainda que motivado no combate à homofobia, leve a efeito qualquer espécie de censura aos psicólogos que queiram promover eventual estudo ou investigação científica relacionada à orientação sexual egodistônica".
Em nota enviada à imprensa, o CFP afirma que vai recorrer da decisão, classificada como "equivocada".
"O CFP e os Conselhos Regionais de Psicologia afirmam que, ao contrário do que alega a ação inicial, a Resolução 01/99, em nenhum momento da sua história, impediu ou restringiu o atendimento psicológico a pessoas de qualquer orientação sexual. O limite ético desses atendimentos se dá na proibição de práticas relacionadas à reorientação sexual e a violação da dignidade das pessoas", diz a nota.
O posicionamento ainda afirma que acategoria psiquiátrica "egodistonia por orientação sexual" é comumente usada para problematizar a Resolução CFP 01/99 e que a psicologia propõe uma outra leitura sobre os sofrimentos decorrentes das chamadas "homossexualidades egodistônicas":
"Entende-se que os sujeitos egodistônicos não se sentem confortáveis com a orientação sexual homossexual vivenciada. Alguns grupos contrários à resolução sugerem que profissionais da Psicologia deveriam oferecer tratamentos que supostamente possibilitariam a mudança da orientação sexual desses sujeitos", diz a nota.
Para o CFP, "não se trata de negar o sofrimento que as pessoas homossexuais são acometidas decorrentes da LGBTfobia, porém entender que o sofrimento não está nas orientações sexuais em si mesmas (homossexualidade, bissexualidade ou heterossexualidade), mas relacionadas às condições sociais que atribuem sentido pejorativo às suas expressões e vivências, prejudicando a qualidade da vida psíquica e social".
O Conselho ainda faz questão de reiterar que a a Resolução 01/99 impacta positivamente o enfrentamento aos preconceitos e na proteção dos direitos da população LGBT no contexto social brasileiro, que apresenta altos índices de violência e mortes por LGBTfobia.
"Em um país que desponta na quantidade de pessoas assassinadas por orientação sexual, não cabe à Psicologia brasileira a produção de mais violência, mais exclusão e mais sofrimento a essa população estigmatizada ao extremo. A Psicologia brasileira não será instrumento de promoção do sofrimento, do preconceito, da intolerância e da exclusão", finaliza a nota.
Fonte: No Mundo